Num post anterior eu comentei como ao disponibilizar centenas de jornais antigos em seu site e permitir a busca por palavras-chaves, a Biblioteca Nacional está possibilitando que a história do Brasil seja esmiuçada, ao mesmo tempo que derruba a velha máxima de que “uma mentira contada mil vezes vira verdade”. Citei até o exemplo da origem da palavra “torcedor”, que sempre se acreditou ter nascido nas Laranjeiras quando na verdade ela é originária do turfe. Pois bem, seguindo essa linha de raciocínio, essa semana eu resolvi conferir a origem do termo “Fla-Flu”, apelido dado ao clássico entre Flamengo e Fluminense, e o resultado foi no mínimo surpreendente!
A versão oficial ou pelo menos a versão comumente divulgada é que a expressão surgiu em 1925 por ocasião da convocação de uma seleção carioca para a disputa do Campeonato Brasileiro de Seleções. Como a grande maioria dos jogadores convocados pertenciam ou ao Flamengo ou ao Fluminense, os jornais passaram a se referir pejorativamente à seleção como “Combinado Fla-Flu”. Uma forma de crítica ao fato de jogadores de outros clubes não terem sido selecionados. Segundo o jornalista e escritor Ruy Castro, entretanto, foi Mário Filho quem, na década de 1930, associou a expressão ao clássico.
Uma rápida pesquisa em jornais da época, sustenta essa versão. De fato vários periódicos referiram-se à seleção carioca de 1925 como “Combinado Fla-Flu” (fig. 1). Aproveitando a deixa, até uma revista teatral utilizando a expressão como título foi encenada no Theatro Glória em dezembro desse mesmo ano (fig. 2). De autoria de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, os autores não deixam dúvidas quanto a origem futebolística do título (fig. 3). Confere também a informação de que foi na década de 1930 que o termo popularizou-se e passou a referir-se ao clássico. Até aí, tudo dentro dos conformes, não fosse por um detalhe: em 1916 existia uma agremiação esportiva chamada “Fla-Flu Football Club”!
fig. 1 – Os jornais referiram-se pejorativamente à seleção carioca de 1925 como “Combinado Fla-Flu”. Para desespero deles ela se sagraria campeã brasileira!
fig. 2 – Em dezembro de 1925 estreou no Theatro Glória na Cinelândia uma peça chamada “Flá-Flú” da Companhia teatral Tro-ló-ló que completava cinquenta anos.
fig. 3 – Os autores não deixam dúvidas quanto a inspiração futebolística na escolha do título da peça.
Mencionado no jornal O Imparcial de 18 de junho de 1916 (fig. 4), sua existência é um fato, sua história um mistério. Provavelmente um dos centenas de clubes de vida efêmera fundados no Rio de Janeiro no rastro da criação do Fluminense, não consegui encontrar nenhuma outra referência a ele. Quando foi fundado? Onde era a sua sede? Qual a razão da escolha do nome? São perguntas que talvez nunca tenham resposta. Mas nada muda o fato de que encontra-se aqui, neste pequeno e desconhecido clube, a origem do termo “Fla-Flu”.
fig. 4 – Muito antes do termo se popularizar existiu em clube de futebol chamado “Fla-Flu”.
Co-irmãos na infância, rivais a partir de 1912, os “Irmãos Karamazov” do futebol formaram combinados em oito ocasiões ao longo da história. A primeira vez foi no final de 1934, em meio à cisão do futebol brasileiro. Aproveitando a interrupção do Torneio Extra, um combinado Flamengo-Fluminense, ambos os clubes membros da Liga Carioca, viajou à capital paulista, onde enfrentou o São Paulo da Floresta, ao mesmo tempo que uma seleção da CBD, capitaneada por Botafogo e Vasco da FMF, encarava o Paléstra Itália. Contando com seis jogadores do Fluminense na equipe titular (mais dois que entraram no decorrer do jogo) a dupla Fla-Flu derrotou o São Paulo por 5 a 4. Os paulistas não se conformaram com a derrota e pediram uma revanche. Disputada no penúltimo dia do ano, nas Laranjeiras, de nada adiantou o São Paulo se reforçar com jogadores do Santos, pois mais uma vez saíram derrotados, desta vez por 2 a 1 de virada.
No início de 1941, Flamengo e Fluminense, campeão e vice do Campeonato Carioca, participaram de um torneio hexagonal na Argentina, a primeira vez que o Tricolor jogava fora do país. O Flu foi muito mal na competição, perdendo todos os jogos que disputou, terminando em último lugar no torneio. O Flamengo também fez feio, e embora tenha chegado a vencer uma de suas partidas, sofreu uma goleada vexaminosa de 7 a 0 para um combinado de Rosário. A cereja do bolo foi a derrota sofrida pelo combinado formado pelos dois clubes, por 3 a 1, para um combinado dos outros clubes participantes do torneio, mesmo tendo os cariocas saído na frente no placar.
Os dois rivais voltariam a se reunir em 1944 para um amistoso contra o Corinthians. O Flamengo havia se comprometido a enfrentar a equipe paulista em 23 de março mas em virtude de alguns jogadores de seu elenco encontrarem-se contundidos pleiteou o cancelamento do jogo. O Corinthians não concordou nem mesmo com um adiamento pois todas as despesas de viagem já haviam sido pagas. Com medo de tomar uma goleada os rubro-negros pediram então socorro ao Fluminense, que cedeu vários de seus jogadores para o amistoso. De fato, toda a defesa (zaga + meio campo) do combinado, que atuou com a camisa do Flamengo, foi formada por jogadores do Tricolor. O Rubro-negro contribuiu com o goleiro e mais quatro jogadores de ataque. Disputado nas Laranjeiras perante grande público, a partida terminaria empatada em 2 a 2.
O sucesso do amistoso levou os dirigentes paulistas a convidarem os cariocas para um mês depois reeditar o confronto, desta vez no Pacaembú, contra o campeão paulista São Paulo. Desfalcado de Zizinho e Pedro Amorim, o combinado, que atuou no primeiro tempo com a camisa do Flamengo e no segundo com o uniforme do Flu, não foi páreo para a equipe bandeirante, perdendo por 3 a 0.
Passariam-se mais de trinta anos para a dupla Fla-Flu voltar a atuar junto. A dupla serviu de sparring no início de 1977 para a seleção brasileira que se preparava para a disputa das eliminatórias da Copa do Mundo da Argentina. Se por um lado Flamengo e Fluminense não puderam contar com os jogadores servindo ao escrete canarinho (Zico, Rivellino, Gil e Edinho), do outro Oswaldo Brandão perdeu três de seus titulares contundidos (Nelinho, Zico e Rivellino). Mais de 60 mil espectadores assistiram ao jogo, catimbado e disputado palmo a palmo, do princípio ao fim. O empate de 1 a 1 fez justiça ao que as duas equipes apresentaram em campo, no mais difícil teste da seleção até então.
Pouco mais de um mês depois os eternos rivais se reuniriam de novo pela última vez, e em dose dupla, pois foi formado dois combinados para a disputa de dois jogos simultâneos em comemoração ao Dia do Cronista Esportivo. O chamado Combinado A, sob a direção de Mário Travaglini, jogou contra um Combinado Vasco-Botafogo, que havia tomada um sacode da seleção brasileira alguns dias antes, no Maracanã. No mesmo horário, o Combinado B, comandado por Jaime Valente, enfrentava o Volta Redonda no estádio deste. O Combinado Fla-Flu, A e B, saiu-se mal nos dois jogos, perdendo a ambos pela contagem mínima.
fig. 5 – Relação de jogos do Combinado Fla-Flu. Os jogadores do Fluminense estão grifados em encarnado.
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