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O plebiscito.

Carlos_Santoro

Updated: Nov 3, 2022


 

Nos anos 1940, a hipótese de extinção do futebol profissional do Fluminense era um tema recorrente nas reuniões do conselho deliberativo do clube. Seu principal proponente era o advogado e conselheiro Sidney Haddock Lobo, que bastava o clube cair na tabela de classificação ou o departamento de futebol fechar um exercício no vermelho, para ele surgir com uma nova proposta de extinção do futebol remunerado. Apesar de ser um orador brilhante, Haddock Lobo jamais foi levado muito a sério, e foi mais para satisfazê-lo e dar um basta em suas elucubrações que o presidente do Conselho Deliberativo, Alair Accioli Antunes, propôs a realização de um inquérito entre os sócios para saber o pensamento do quadro social sobre o assunto. É a história desse plebiscito – realizado em 1949 – e seu resultado, que eu vou contar agora.

O Fluminense foi criado em 1902 exclusivamente para a prática do futebol. Tanto que carrega o “Football” no nome. Mas com o tempo, conforme ia ganhando novos associados, foi expandindo seus horizontes e abraçando outros esportes. Enquanto o futebol permaneceu amador, reinou a paz e a harmonia entre as diferentes modalidades esportivas nas Laranjeiras, mas com a implantação do profissionalismo em 1933, com o clube passando a ter de gastar elevadas somas em contratação e salários de jogadores, muitas vezes provocando déficit nas contas do clube, alguns começaram a questionar a viabilidade financeira de se manter um departamento de futebol profissional em detrimento do clube social e dos esportes ditos amadores.

O estrondoso sucesso do futebol do Fluminense no período 1936-1941, entretanto, impediu que qualquer questionamento atingisse maior vulto. Mas isso começou a mudar a partir de 1943, na segunda gestão do presidente Marcos Carneiro de Mendonça, quando os insucessos da equipe dentro de campo começaram a por em xeque a sua própria existência e exequibilidade econômica. E é nesse cenário adverso que surge Sidney Haddock Lobo, personagem central de toda a trama que se desenrolaria nos anos subsequentes.

Longe de ser uma figura excêntrica, Haddock Lobo era um advogado conceituado e de sucesso e, portanto, uma pessoa a ser ouvida, mas foi só na reunião de aprovação das contas de 1944, realizada em 23 de fevereiro de 1945, após ouvir do vice-presidente financeiro que o minguado saldo de dois mil e quinhentos cruzeiros do departamento de futebol só fora possível devido à arrecadação de 427 mil cruzeiros obtida com a venda dos passes de diversos jogadores, que ele conseguiu que sua proposta de estudo da possibilidade de extinção do futebol profissional fosse aprovada por unanimidade pelo conselho (fig. 1).


fig. 1 – Proposta de estudo da extinção do Departamento de Futebol Profissional encaminhada pelo conselheiro Sidney Haddock Lobo ao Conselho Deliberativo do clube em fevereiro de 1945.


Os jornais foram rápidos em espalhar a notícia que o Fluminense pretendia acabar com o seu futebol profissional (fig. 2). Mas o estudo prometido ia sendo sempre postergado, até que finalmente em 20 de fevereiro de 1948, em nova reunião do conselho, Haddock Lobo conseguiu que fosse aprovada a realização de uma enquete ou plebiscito entre os sócios consultando-os se eles eram favoráveis ou não ao profissionalismo. Simultaneamente, por sugestão também de Haddock Lobo, ficou assentado que seria formada uma comissão para estudar a possibilidade da formação de uma sociedade anônima, independente do clube social, para administrar o futebol tricolor.


fig. 2 – A cada investida de Sidney Haddock Lobo, os jornais eram rápidos em noticiar o fim do futebol do Fluminense!


A conquista do Torneio Municipal de 1948 sobre o Expresso vascaíno, título de grande repercussão na época, adiou esses planos, entretanto, e foi só em junho do ano seguinte, que a diretoria tricolor, agora presidida por Fábio Carneiro de Mendonça, finalmente realizou a enquete, através de circular enviada aos sócios do clube (fig. 3) acompanhada do seguinte questionário:


1. Acha necessária e imprescindível a reforma de todo o mecanismo do futebol profissional? 2. Não conseguindo modificar o panorama profissionalista, deve o Fluminense F. C. extinguir este setor de suas atividades? 3. Se a maioria dos sócios for favorável a este extrema resolução, continuará como sócio do clube? 4. Acha que o profissionalismo trouxe vantagens ao desenvolvimento técnico do futebol? 5. Quando entrou para o Fluminense F. C. já existia o profissionalismo? 6. Quais os divertimentos do Fluminense F. C. Que mais frequenta: os sociais, os esportivos profissionais ou os esportivos amadores?


fig. 3 – Circular enviada aos sócios em junho de 1949 acompanhada de questionário sobre a extinção ou não do futebol profissional.


A repercussão do plebiscito tricolor foi enorme. E as críticas por parte da imprensa, unânimes. O jornal O Globo afirmou que o questionário era confuso e dificultava uma resposta direta do sócio, que era coagido a responder afirmativamente algumas perguntas. O jornalista Mário Filho, em vários editoriais publicados no Jornal dos Sports, condenou a maneira que a consulta estava sendo feita, indisfarçavelmente orientada contra o futebol. Wilton Liguo do O Jornal julgava o momento do plebiscito inoportuno, achando que ele deveria ter sido realizado no início do ano, antes do campeonato começar, quando o Fluminense ainda não havia gasto enormes somas na aquisição de reforços. O cronista esportivo Geraldo Romualdo da Silva chamou a proposta de extinção do futebol profissional do Tricolor de “eutanásia haddocklobiana”, uma teoria só lembrada nos momentos ruins da equipe. José Maria Scassa criticou o presidente tricolor por transformar uma simples consulta que deveria ser restrita a um “sim” ou um “não” num formulário de perguntas subjetivas. O Diário Carioca por sua vez afirmou que um clube da projeção do Fluminense trocar o futebol profissional pelo amador era a mesma coisa que deixar de mão um Cadillac 1949 para voltar a andar num Ford Bigode. E até o escritor José Lins do Rego, deu seu pitaco, dizendo que o Fluminense era necessário, e que na condição de rubro-negro doente, doeria ver fora do futebol seu maior rival.

Os dirigentes tricolores também se manifestaram. Mário Polo criticou as críticas, lembrando que certo ou errado, por bem ou por mal, todo o clube ou associação coletiva privada tinha o direito de consultar livremente os seus sócios sobre qualquer assunto que julgassem oportuno. Mas a declaração mais polêmica e que surpreendentemente não causou maiores repercussões, foi a do próprio presidente tricolor, Fábio Carneiro de Mendonça, que indagado se era contra ou a favor do futebol profissional, afirmou ser, naquele momento, contrário, e que se essa fosse a vontade dos sócios, extinguiria o Departamento de Futebol Profissional do Flu (fig. 4)!


fig. 4 – Em entrevista ao Jornal dos Sports em junho de 1949, o presidente do Fluminense afirmou ser favorável à extinção do futebol profissional do clube!


Mais de dois mil sócios do Fluminense responderam ao inquérito, que, entretanto, só teria seu resultado divulgado cinco meses depois, em 21 de novembro, em reunião do Conselho Deliberativo (fig. 5). Conforme esperado o pronunciamento do quadro social foi francamente favorável ao futebol profissional (fig. 6), mas em outras bases. De fato, à pergunta sobre se “acha necessária e imprescindível a reforma de todo o mecanismo do futebol profissional?”, responderam favoravelmente 55% dos sócios e contra apenas 15%, sendo as respostas restantes indiferentes ou aleatórias. Quanto à consulta sobre se “não conseguindo modificar o panorama profissionalista, deve o Fluminense extinguir esse setor de suas atividades?”, manifestaram-se contrários 70,7% e a favor 23,3%, sendo os outros 6% indiferentes. Ainda “se continuariam sócios do clube no caso da extinção do futebol profissional?”, 61% responderam que sim, e apenas 29,8% afirmaram que deixariam o clube. Por fim, vale ressaltar que 84,9% dos sócios declararam ter ingressado no clube após a adoção do regime profissional.


fig. 5 – Aviso do Conselho Deliberativo do Fluminense, publicado em novembro de 1949, convocando os conselheiros para conhecer o resultado da enquete promovida pelo clube sobre uma possível extinção do futebol profissional.


fig. 6 – 70,7% dos sócios votaram a favor do Fluminense continuar sendo Football Club!


O resultado do plebiscito teve pouco efeito prático. Tivesse o resultado sido “sim”, o futebol do Fluminense não mais existiria, e eu não estaria aqui escrevendo essas linhas, pois seria muito provavelmente torcedor de algum outro clube. Mas a resposta tendo sido “não”, nada se modificou. A ideia da sociedade anônima não vingou e o Fluminense segue sua trajetória no futebol, pontuada de altos e baixos, de alegrias e de tristezas e de mais glórias do que fracassos.

Quanto a Sidney Haddock Lobo, advogado especializado em direito marinho, ao falecer em 1959, ele ainda era conselheiro do Fluminense, em luta eterna pela emancipação absoluta do futebol profissional do Tricolor, ao qual passou a preconizar como uma sociedade anônima, independente do clube social. Ponto de vista que, mesmo combatido pela maioria do conselho, defendeu até a morte, através de sua brilhante inteligência e oratória e seu amor desmedido às coisas de Álvaro Chaves.

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