Após passar alguns anos pesquisando na Biblioteca Nacional e no Jornal dos Sports, copiando escalações de jogos, anotando nomes completos e datas de nascimento de jogadores nas raras vezes em que eram mencionados em jornais – usualmente quando o time era campeão -, eu entrei de sócio no Fluminense com o único propósito de pesquisar os arquivos do clube. Meu objetivo era expandir meu banco de dados, completar lacunas nas minhas súmulas e principalmente obter os dados pessoais de todos os jogadores que algum dia vestiram a camisa da equipe principal do Flu. Eu logo percebi que enquanto os jogadores profissionais estavam bem documentados, pouca informação havia sobre os jogadores amadores, aqueles que defenderam o Tricolor de 1902 à 1932. Não existiam mais suas fichas de sócios e o máximo que encontrei foi um velho livro de endereços de 1909 (existe um outro de 1920) – para mim o mais importante livro de todo o Flumemória -, que muito tem me ajudado na identificação de antigos jogadores nesses últimos 20 anos. Estava claro que se algum dia eu pretendia ter um banco de dados completo, com informações sobre TODOS os jogadores, não seria no Fluminense que eu as conseguiria, eu precisava buscar outras fontes. E foi assim que em pouco tempo eu me vi percorrendo, acreditem, cemitérios!
Em minhas pesquisas na Biblioteca, eu sempre tivera o cuidado de anotar a data de óbito, quando mencionada, de qualquer jogador que tivesse defendido o Flu. E foi de posse de uma pequena lista dessas datas que eu me dirigi à Santa Casa no Centro do Rio, e lá consegui os respectivos números dos jazigos desses jogadores. Uma visita ao Cemitério de S. João Baptista e eu localizei meu primeiro túmulo, o de Victor Etchegaray, fundador e primeiro capitão do Fluminense (fig. 1). Descobri que ele tinha François no nome, que seu irmão, também jogador do Flu, conhecido como Emílio, chamava-se na verdade Emile (não consta na lápide) – eles eram filhos de franceses -, e consegui minhas primeiras datas. Tinha início então o trabalho de identificação e obtenção da data de nascimento de antigos jogadores amadores que tem sido um dos meus principais focos de pesquisa do Fluminense nesses últimos 20 anos, e onde cemitérios são apenas uma das diversas fontes de informação que eu utilizo.
fig. 1 – O Fluminense têm uma dívida eterna de gratidão para com Victor Etchegaray, seu primeiro capitão, e deveria restaurar a lápide de seu túmulo que se encontra abandonado – a família Etchegaray não deixou descendentes – e em péssimo estado de conservação.
Tempos depois, pesquisando registros de batismos na igreja inglesa de Botafogo eu consegui mais alguns nomes e datas para o meu banco de dados. Jogadores como Laurence Andrews, Thomas Kentish e Douglas Fox por exemplo. Num site de genealogia inglês eu obtive a informação de que o goleiro Cruickshank chamava-se Charles e nascera na Índia. Uma assinatura num registro de casamento quando comparada à uma existente no Fluminense, me trouxe a informação de que o polímata português Hugo Sarmento nascera em Luanda. Uma velha lista de passageiros que desembarcaram em Nova Iorque, e Oscar Cox ganhou um Sebastião no nome, informação que nem o próprio clube sabia e que eu confirmaria depois em três outros documentos. Muitos desses nomes eu tenho divulgado através dos anos em um antigo site de estatísticas do Flu que eu mantive na segunda metade da década de 1990, em livros em que eu fui co-autor e mesmo em livros de terceiros em que porventura eu tenha colaborado. A esmagadora maioria, entretanto, eu estarei divulgando aqui em primeira mão no meu blog.
Existem outras maneiras de conseguir informação e a minha preferida é através de anúncios religiosos e documentos de cartório. De posse deles, é possível esboçar a arvore genealógica imediata do jogador, descobrir seus descendentes, e em alguns casos, contata-los, o que abre a possibilidade de se conseguir fotos – eu tenho mais de mil fotos de jogadores diferentes no meu banco de dados -, e conhecer um pouco de suas histórias. Foi assim com Nestor Macedo, Max Naegeli, José Bello, A.R.L. Wright e “E. Millar”, só para citar alguns.
Esse não foi o caso do personagem do meu post desta semana, Nestor Sampaio, campeão carioca de 1906, entretanto. Pois foi através de uma informação publicada num relatório anual do clube que eu consegui descobrir seu paradeiro. Infelizmente Nestor não deixou descendentes e nem o clube tem fotos de 1906, portanto ele segue sendo um personagem sem rosto, uma nota de rodapé na história do Fluminense é verdade, mas mesmo assim, parte integrante dela.
Nestor Sampaio aparece citado no livro de registros de jogos do Fluminense uma única vez, escalado na ponta-direita, na partida contra o Football & Atlhletic de 14 de julho (fig. 2). Seu nome é mencionado no livro de registros de sócios do clube em 1906 e 1907, quando em 24 de dezembro pediu demissão (fig. 3). E só. Não há registro de seu endereço, de quem o indicou para sócio, nem mais nada. Uma causa quase perdida e a primeira vista parecia praticamente impossível conseguir rastreá-lo, Nestor Sampaio sendo supostamente um nome bastante comum. Um outro Sampaio, Eurico, citado no livro de sócios, e jogador do segundo quadro, abre uma possibilidade de pesquisa, pois não era incomum irmãos e primos jogarem bola juntos nesses primórdios do Fluminense, e sempre existe a possibilidade de Eurico ser parente de Nestor, quiçá seu irmão.
fig. 2 – Nestor Sampaio é mencionado no livro de registros de jogos do Fluminense uma única vez.
fig. 3 – Nestor Sampaio foi demitido do clube em sessão de 24 de dezembro de 1907.
Pois bem. Como pesquisador, eu dou muito valor aos relatórios anuais e atas de assembleia do Fluminense. Embora normalmente muito chatos de se ler, volta e meia pipoca uma informação importante aqui e outra ali, como o paradeiro de Carlos Alberto, aquele que nos deu o apelido de pó-de-arroz, por exemplo, mas isso é história para ser contada em um outro post. E foi justamente num desses relatórios anuais, mais especificamente no de 1908, que eu encontrei a informação que precisava para localizar Nestor Sampaio, infelizmente porém, uma manifestação de pesar pelo seu passamento (fig. 4).
fig. 4 – A menção da morte de Nestor Sampaio no Relatório Anual de Diretoria de 1908 foi o ponto de partida da pesquisa que me permitiu identifica-lo.
Ciente de seu óbito, não foi difícil encontrar avisos fúnebres de um “Nestor Sampaio” em jornais desse mesmo ano (fig.5). Rapidamente eu descobri que esse malogrado “Nestor” tinha um irmão chamado Eurico e um primo chamado Carlos de Macedo – também jogador do Flu -, e morava no mesmo endereço que esses dois declararam no registro de sócios do Fluminense. Pronto. Estava identificado o nosso querido Nestor Sampaio. Mas antes de contar sua história eu quero fazer um adendo.
fig. 5 – O “malogrado” Nestor Sampaio mereceu duas missas em sua lembrança, uma de sétimo dia mandada rezar por seus parentes e outra de um mês pelos seus antigos companheiros de trabalho.
Os jogos do período amador do Fluminense estão registrados numa série de livros que podem ser consultados na sala do Flumemória. O volume 1 engloba o período de 1902 à 1915 e dada sua quantidade de erros e omissões sempre representou um problema para mim até que depois de anos eu percebi o óbvio, ele apenas replicava informações obtidas de outras fontes como jornais e revistas, muitas delas erradas, o que significa dizer que ele não havia sido preenchido conforme os jogos iam acontecendo e sim a posteriori, e portanto tinha pouca validade como fonte primária de consulta. Há vários indícios disso, que por si só dariam um post e portanto não vou enumerá-los aqui, mas acredito que ele tenha sido preenchido retroativamente por volta de 1915. Mas por que eu estou mencionando isso? Explico. A ficha do jogo contra o Botafogo de 30 de setembro de 1906 menciona Nestor Macedo na escalação (fig. 6), o que é impossível pois ele só entraria de sócio do clube no ano seguinte e mesmo assim no Rio FC, extraoficialmente o time infantil do Flu. Nenhum jornal menciona Macedo na escalação provável do jogo. Todos mencionam Oscar Cox na ponta direita (fig. 7), o que não é impossível mas improvável, pois Oscar havia viajado alguns dias antes para Santos, onde iria trabalhar nos próximos dois anos (fig. 8). Nenhum jornal publicou a escalação após o jogo, mas o A Notícia faz uma boa descrição da partida e em sua crônica menciona “Nestor” duas vezes (fig. 9). Ora, o único Nestor sócio do Fluminense em 1906 era o ponta-direita Nestor Sampaio, que não por coincidência atuava na mesma posição que deveria jogar Oscar Cox nas escalações anunciadas antes da partida, portanto me parece bastante claro que Nestor Sampaio atuou nessa partida no lugar de Oscar Cox, e a pessoa que preencheu o registro ao ler o nome “Nestor” no jornal assumiu erroneamente tratar-se de Nestor Macedo em vez de Nestor Sampaio, que é quem eu considero no meu banco de dados.
fig. 6 – A ficha do clássico vovô de 30 de setembro de 1906 menciona Nestor Macedo na escalação, o que é impossível pois ele só entraria de sócio no Fluminense no ano seguinte.
fig. 7 – Oscar Cox estava escalado para atuar na ponta-direita do clássico vovô de 30 de setembro de 1906...
fig. 8 – …mas alguns dias antes do jogo se mudou para Santos, onde viveria os próximos dois anos.
fig. 9 – É bastante provável que ele tenha sido substituído na partida pelo ponta-direita Nestor Sampaio e não por Nestor Macedo como afirma o livro de registros de jogos do clube.
Nestor de Sampaio nasceu no Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1884, filho mais velho do Almirante Herculano Alfredo de Sampaio (1855-1926) e de Ana Pedreira de Souza, e foi batizado na Igreja de Nossa Senhora do Parto em 17 de maio de 1885. Engenheiro Naval, em sua longa carreira militar Herculano exerceu várias comissões de destaque. Na revolta de 1892 foi quem conduziu preso ao Rio, por ordem do Marechal Floriano Peixoto, o Almirante Wandenkolk. Na década seguinte foi o encarregado de acompanhar, no norte da Inglaterra, a construção dos encouraçados São Paulo e Minas Gerais.
Nestor participou em 1905 da fundação do South American Football Club (fig. 10), um dos centenas de clubes de vida efêmera fundados no rastro do Fluminense. Além dele, faziam parte do ground committee do clube, cujas cores eram o marrom e o branco, seu primo Carlos de Macedo e Jorge Portella, esse último, junto com seu outro primo Álvaro, presidente do clube, sócios e jogadores do Fluminense.
fig. 10 – O South American FC, um dos centenas de clubes de vida efêmera criados no rastro do Fluminense, tinha em sua diretoria vários jogadores que atuaram ou atuariam pelo Flu.
No ano seguinte, ele, o irmão Eurico (1886-1961) e o primo Carlos seguiram o exemplo de Álvaro e Jorge e também entraram de sócios no Fluminense. Desde a morte de Adolpho Simonsen o Flu vinha encontrando dificuldades em achar um extrema-direita, e até a ascensão de Oswaldo Gomes, Nestor foi um dos vários jogadores testados na posição. Seus únicos dois jogos pelo Tricolor foram o 7 a 0 sobre o Football & Athletic em 14 de julho e o já mencionado 6 a 0 sobre o Botafogo em 30 de setembro. O que é o suficiente para incluí-lo no seleto grupo de 22 jogadores vencedores do primeiro Campeonato Carioca. Seu nome aparece também numa partida interna disputada por um time capitaneado por Victor Etchegaray e outro comandado por Oscar Cox em 2 de setembro (fig. 11). Seu irmão Eurico disputou apenas jogos pelo segundo quadro.
fig. 11 – Nestor Sampaio participou de um jogo interno do Fluminense no início de setembro de 1906.
Nestor estudou na Escola Naval e foi funcionário da Companhia Singer. No dia 23 de fevereiro de 1907 casou-se com Ambrosina Barreto Guimarães, irmã de Baptista e Zezé, jogadores que fariam sucesso no Fluminense na década seguinte. Ao final desse mesmo ano desligava-se do clube e em maio de 1908, ao lado da esposa, deixava o Brasil pela última vez no paquete italiano Minas, onde iria se juntar ao pai comissionado na Europa. Em 24 de agosto de 1908, aos 23 anos, falecia prematuramente em um hospital em Glasgow, na Escócia, vítima de meningite (fig. 12). Seu corpo foi trasladado para o Rio e enterrado no Cemitério de S. João Baptista em novembro (fig. 13), o Fluminense fazendo-se representar no enterro por alguns de seus sócios.
fig. 12 – O registro de óbito de Nestor Sampaio que eu adquiri nos registros estatutários da Escócia me permitiu determinar a causa de sua morte precoce.
fig. 13 – Essa pequena nota sobre seu sepultamento me permitiu localizar o seu túmulo e tirar a foto que encabeça este post.
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