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O inglês que amava o Brasil.

Carlos_Santoro

Updated: Oct 21, 2022


 

Pode parecer incrível, dada a rivalidade histórica entre os dois clubes, mas houve um tempo em que o presidente do Fluminense e o do Flamengo eram a mesma pessoa. Isso aconteceu em 1906, época em que o rubro-negro era apenas um clube de remo. De fato até a crise de 1911, que resultou no pedido de demissão de quase toda a equipe titular do Tricolor e sua posterior acolhida no Flamengo, a relação entre as duas agremiações era tão estreita que muitos sócios de um eram sócios do outro, e competiam por ambas as equipes em seus respectivos esportes. Mas quem foi esse sujeito que presidiu os dois clubes? Chamava-se Francis Walter, e é a história dele que eu vou contar hoje, justamente no ano do sesquicentenário de seu nascimento, o que faz dele o personagem (entre jogadores, treinadores, presidentes e fundadores) mais antigo da história do Fluminense.

Francis Henry Walter nasceu em 15 de junho de 1867 em Londres, filho de Jacob e Janet Josephine Walter. Seu pai, um comerciante e negociante judeu nascido na ilha de Barbados, na época uma colônia inglesa, trabalhou e viveu muitos anos no Brasil (nas décadas de 1850 e 1860) e quando retornou à Inglaterra manteve a sociedade que tinha na firma de comércio exterior Arthur Moss & C. do Rio de Janeiro, abrindo uma filial, a Jacob Walter & C., na capital inglesa. A Arthur Moss passaria por muitas alterações de nome ao longo dos anos, conforme iam mudando os seus sócios. Tornou-se Walter, Hime & C. a partir de 1883 com a entrada de Edwin Elkin Hime (o patriarca da família Hime, muito ligada ao Botafogo mas com história também no Fluminense) na sociedade. Virou Walter, Block & C. posteriormente, e a partir de 1902, com a admissão de Francis na empresa, juntando-se ao seu irmão Charles Hamilton Walter, passou a se chamar Walter Bros. & C., estabelecida na rua da Quitanda.

Não se sabe ao certo quando Francis Walter imigrou para o Brasil, seu nome sendo mencionado em jornais cariocas pela primeira vez em 1896. O que se sabe é que ele é um dos pioneiros do futebol carioca, tendo participado da primeira partida entre equipes do Rio e de São Paulo, disputada no Velódromo Paulista em 19 de outubro de 1901. Em julho de 1903, recuperado de febre amarela, ele entrou de sócio (número 88) no Fluminense, proposto por Horácio da Costa Santos, e cinco meses depois era eleito presidente do clube.

O dirigente Francis Walter comandou os destinos do Tricolor por cinco anos (de 15 de dezembro de 1903 à 13 de dezembro de 1908), o segundo mandato mais longo do período amadorista, suplantado apenas pelo de Arnaldo Guinle, que governou o Fluminense por mais de 15 anos em sua primeira gestão (1916-1931). Sucessor de Oscar Cox, fazia mais sentido eleger um empreendedor de sucesso de 36 anos para gerenciar o clube nos seus difíceis anos iniciais, do que um jovem de 23 anos, ainda no começo de sua carreira profissional. Vale ressaltar que nessa época as eleições no Fluminense, tanto para presidente como para todos os outros cargos de diretoria, incluindo o ground committee, eram anuais, realizadas sempre no mês de dezembro, e tudo indica, pré-acordadas, combinada antes pelos sócios, a eleição em si servindo apenas para ratificar o nome anteriormente escolhido. Pelo menos é o que indica a quase totalidade de votos serem sempre para um só candidato em quase todos os sufrágios. O inglês Francis Walter, por sinal o único estrangeiro a presidir o Fluminense em sua história, foi portanto eleito em 1903 e reeleito outras quatro vezes (1904, 1905, 1906 e 1907), sendo que sua última reeleição precisou ser realizada três vezes em três datas distintas devido a erros na convocação da assembleia, falta de quorum e outros impedimentos. Imagino que ele não tenha querido (ou não quiseram que ele fosse) ser reeleito uma quinta vez, pois na eleição de dezembro de 1908 ele sequer compareceu à sessão, pedindo desculpas pela ausência, alegando estar ocupado com “muitos afazeres”.

Em que pese suas prolongadas viagens de negócios à Inglaterra (foram pelo menos cinco durante seus cinco anos de mandato e que juntas somam mais de um ano de ausência do país no período), Francis Walter foi um ótimo presidente, talvez igualado apenas pela gestão de Joaquim Freire (1914-1916) no período amadorista e só suplantado pela de Arnaldo Guinle. Foi durante seu mandato que o Fluminense virou tricolor, adotando as cores verde, encarnado e branco, inaugurou seu campo (fig. 1), sua arquibancada (fig. 2) e sua segunda sede (fig. 3), cobrou ingresso pela primeira vez em uma partida de futebol, recebeu a visita do Presidente da República, disputou e venceu o primeiro campeonato carioca e inaugurou sua primeira quadra de tênis. Foram anos de crescimento do clube que viu seu número de sócios dobrar (de 143 para 275) e suas receitas quintuplicar (de 7:974$ para 42:120$). Por suas realizações à frente do Fluminense, Francis Walter recebeu, ao término de seu mandato, o título de Presidente Honorário do clube.


fig. 1 – O Fluminense inaugurou oficialmente o seu campo em 14 de agosto de 1904, na gestão Francis Walter.


fig. 2 – Orçada em 25 contos de réis, a primeira arquibancada do Fluminense foi toda bancada por Eduardo Guinle, proprietário do terreno onde o clube estava instalado.


fig. 3 – Construída logo atrás do gol dos fundos do terreno, a segunda sede (pavilhão) do Fluminense foi inaugurada em 1905.


A partir de 1905 o Fluminense passou a realizar um festival anual de atletismo entre os seus sócios e Francis Walter instituiu então a Challenge Walter (fig. 4), uma bonita taça destinada ao vencedor da principal prova do evento, uma corrida rasa de um quarto de milha (aproximadamente 400 metros) (fig. 5). Essa cobiçada taça, disputada até 1915 e de posse transitória, tem importância histórica para o Fluminense pois é a mais antiga da rica coleção de troféus do clube. Hoje exposta em vitrine na sala da presidência, ela teve entre seus vencedores verdadeiros ícones do Tricolor, como Edwin Cox, Affonso de Castro e Oswaldo Gomes.


fig. 4 – Instituída por Francis Walter, a Challenge Walter é o troféu mais antigo do Fluminense. A inscrição na taça diz: “Ao Fluminense Football Club offerece o seu Presidente Francis H. Walter para premio annual da corrida de quarto de milha 1905”.


fig. 5 – Henry Jeans, em terceiro na foto, foi o vencedor da primeira Challenge Walter, disputada em primeiro de outubro de 1905.


Segundo presidente do Fluminense, Walter foi também o segundo presidente da Liga Metropolitana de Football, posteriormente Liga Metropolitana de Sports Athléticos. Sob sua liderança foi organizado o primeiro campeonato carioca em 1906. Ausente do país no final de 1907, Walter não participou diretamente do lamentável episódio de outubro daquele ano, que resultou na dissolução da Liga, mas foi graças a sua iniciativa e esforço, que a entidade pode se reorganizar e renascer no ano seguinte, conservando o mesmo nome. Em 1909, não mais presidente do Fluminense, Walter chegou a se exonerar da presidência da Liga, devido dizem a recusa do Tricolor em ceder convites permanentes (ingressos gratuitos) à entidade e seus convidados, talvez uma represália do clube por não ter sido aceito o seu pedido de posse definitiva da Taça Colombo (o Flu julgava-se tricampeão de 1906, 1907 e 1908), mas acabou sendo demovido da ideia e reassumiu o cargo. No total Walter foi presidente da entidade por pouco mais de quatro anos, de 24/12/1905 à 14/01/1910. Se comandar o Fluminense e a Liga Metropolitana não fosse o bastante, o quase onipresente Walter foi também conforme mencionado antes, presidente do Clube de Regatas do Flamengo, de 24/11/1905 à 26/11/1906, e também do Laranjeiras Club, local onde o Fluminense quase foi fundado, e do Lawn Tennis Club de Petrópolis, além de ter sido membro de diretoria do Yatch Club Brasileiro.

Mas Francis Walter não foi só dirigente, pois também correu atrás de bola, tendo atuado como meia pelo Fluminense em 1904 em alguns amistosos. No ano seguinte passou a jogar no gol, e foi defendendo a meta Tricolor que entrou para a história, ao participar dos cinco jogos iniciais do primeiro campeonato carioca em 1906 (fig. 6). Baixo, atarracado, com 39 anos de idade, enquanto seus colegas de time tinham em média 24, é difícil afirmar hoje, o quanto o seu status de presidente do Fluminense influiu em sua escalação. Seus números porém – 4 gols sofridos em 5 jogos – não são ruins, mesmo quando comparados a seu eventual substituto, Waterman – 2 gols sofridos em 5 jogos -; e dada a preferência do Fluminense na época por goleiros ingleses seria injusto afirmar que seu cargo tenha tido qualquer influência na sua escolha. Walter fez seu último jogo pelo Tricolor em 5 de agosto de 1906 contra o Paysandu (só Félix e Magno Alves atuaram no Fluminense com idade mais avançada do que ele) pois no mês seguinte viajou para a Inglaterra, abrindo espaço para que seu conterrâneo Waterman lhe tomasse a vaga.


fig. 6 – Campeão carioca de 1906, Francis Walter foi o primeiro goleiro do Fluminense a disputar uma partida oficial de campeonato.


No final de 1907, em uma de suas viagens à Londres, Walter conheceu Christabel Bury, uma jovem de 22 anos de idade. No dia seguinte pediu-a em matrimônio e no terceiro estavam oficialmente noivos. O casamento realizou-se na capital inglesa em 22 de abril de 1908 após Walter retornar de viagem ao Brasil, onde participara da reorganização da Liga. Freqüentadores das altas rodas, ficariam famosas as recepções e soirées oferecidas pelo casal em sua vila em Petrópolis na primeira metade da década de 1910.

Com a morte do irmão e sócio em 1912, a Walter Bros. mudou a sua razão social para F. H. Walter & C., e em 1919, após a saída de Francis Walter da firma e seu retorno em definitivo à Inglaterra, para apenas Walter & C. Walter voltou ao Brasil pela última vez em dezembro de 1926, comentou-se na época para tratar da instalação de uma empresa de exportação de borracha. Em março de 1927 ele esteve no Fluminense pela última vez, onde foi homenageado com um voto de louvor pelo conselho deliberativo do clube em assembleia. Pouco mais de três meses depois, já de volta a Londres, ele faleceu repentinamente, vítima de infarto fulminante, quis o destino no exato dia que completava 60 anos (fig. 7). Francis Walter não foi esquecido pelo Fluminense, que decretou luto oficial de três dias em sua homenagem e mandou rezar missa por sua alma.


fig. 7 – Registro de óbito de Francis Henry Walter. Quis o destino que ele viesse a falecer no exato dia que completava 60 anos.


O título deste post faz alusão a uma crônica de João do Rio da Gazeta de Notícias, que em visita guiada às instalações do Fluminense em 1905, nos conta que seu anfitrião referiu-se ao presidente Francis Walter como: “um jovem inglês que ama o Brasil e tem sido a própria dedicação para o progresso do clube.”

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